Capítulo 8 - As Memórias de Clarice

Passaram-se quatro dias após o que aconteceu entre mim e o João na arrecadação da escola. Lembro-me que tivemos uma discussão pois eu queria esquecer o que tinha acontecido, mas ele dizia que eu não podia esquecer, pois ele também não esquecia. A sua obsessão por mim estava a tornar-se patológica: seguia-me para todo o lado; se me visse a falar com o Fernando, mais tarde vinha pedir explicações; estava a tornar-se agressivo. Perguntava-me muitas vezes como seria possível um rapaz tão aplicado, gentil e meigo ter-se transformado em algo totalmente oposto. Ao inicio culpava-me, culpava o que tinha acontecido naquela arrecadação, culpava-me por não ter impedido; mas será que tinha realmente culpa? Aquilo aconteceu porque ambos quisemos, ele sabia que eu não podia assumir nenhum compromisso com ele; ele é menor, mas já não é nenhuma criança para não perceber isso. Algo ocorreu-me; talvez tivesse sido a sua primeira vez e isso o tenha deixado com um certo sentimento de possessão. Bom, no entanto o comportamento dele era demasiado exagerado para que essa fosse a única explicação. No quinto dia ele ficou na sala depois de todos terem saído, eu ainda estava a arrumar as pastas na mala quando ele se aproximou da minha secretária:
- Acha bem o que fez comigo?
- O que é que eu fiz contigo?
- Você só pode estar a brincar - disse ele com a voz arrastada. - VOCÊ SÓ PODE ESTAR A BRINCAR!
- Não grites comigo!! Não te admito! O que aconteceu, aconteceu porque ambos quisemos!
- Quem é que lhe disse que eu queria?
- Como assim? Foste tu que te começaste a despir, foste tu que nos trancaste lá!
- Mentirosa! Mentirosa!
Senti algo apertar-me a garganta; foi tão rápido que nem tinha percebido que eram as mãos do João, estava a apertá-las cada vez mais, eu já sentia falta de ar, tentei pará-lo mas ele tinha mais força. Ouvi a porta a abrir e, pelo canto do olho, consegui ver alguém - sem perceber quem era, pois a minha visão estava turva das lágrimas - a vir na nossa direcção e a puxar o João para trás. Quando recuperei um pouco o ar e limpei as lágrimas vi o Fernando a agarrar o João.
- Clarice, estás bem? - perguntou-me virando-se para trás.
- Acho que sim, só estou um pouco zonza.
Olhei para o João, ele estava completamente desfigurado, não literalmente como se lhe tivessem dado uma tareia, desfigurado de raiva, como se não fosse ele próprio. Tinha o rosto vermelho e suado, debatia-se contra os braços do Fernando que o seguravam, enquanto este o levava para fora da sala de aula. Soube, mais tarde, que ele tinha sido levado para o hospital a pedido da psicóloga da escola.
Esqueci-me por completo do que a minha me tinha exigido e pedi ao Fernando que fosse comigo para casa. Quando chegámos a minha mãe encontrava-se na sala e antes que ela começasse a barafustar, disse que eu e o Fernando tínhamos um projecto em conjunto no qual precisávamos de trabalhar. Jantámos os três, quase sem dizer palavra. A minha mãe foi para a cama poucos minutos depois, para meu alívio pois precisava conversar com ele.
- Acho que a culpa é minha, tudo isto é culpa minha.
- Como assim culpa tua? Aquele miúdo quase te matou hoje!
- Eu sei, mas tenho algo para te contar...
Fechei os olhos, respirei fundo e tentei falar. Quando finalmente as palavras começaram a sair, notei que estava a olhar para a lareira e não para o Fernando.
- Tu fizeste o quê??? Diz-me que isso não é verdade!
- É verdade!
- Mas por que raio não o impediste?
- Não consegui! Fiquei paralisada...
- De certo não ficaste paralisada quando tiveste que mexer as ancas!
- Escusavas de falar assim!! Só te contei porque confio em ti, precisava de falar sobre isto, estava-me a sufocar. Não era para te pores com piadas sarcásticas!
- Desculpa, mas que queres que te diga, o que aconteceu foi errado.
- Eu sei!
- Ok, vamos ter de evitar que isto se espalhe pela escola...
- Como? A esta hora ele já deve ter falado aos médicos, aos pais, a toda a gente que possa estar a volta dele. Vou ser despedida, nunca mais vou poder dar aulas.
- Calma! Estás a ficar histérica, não penses nisso, não vai acontecer nada disso. Vou-te fazer um chá...

No dia seguinte custou-me imenso levantar-me sabendo o que teria que enfrentar na escola. No entanto, quando lá cheguei, o cenário era diferente daquele que eu tinha imaginado. O director veio falar comigo e pediu-me desculpas pelo incidente, achei estranho.
- Como está o João? Que disse ele, deu alguma justificação para o ataque. - tentei não parecer desesperada ou com medo.
- Não disse nada. Não diz uma única palavra desde que o seu colega, Fernando, o levou à psicóloga. Continua no hospital, acreditam que está em estado de choque.

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