Capítulo 10 - As Memórias de Clarice
Nem sei por onde
começar, nem o que hei-de escrever. O mais provável é não acreditar nas minhas
palavras. O que quero dizer é simplesmente que a amo; quero pedir perdão por
toda aquela situação, mas não consigo conter os ciúmes cada vez que a vejo
perto do professor Fernando. Não contei a ninguém o que aconteceu entre nós, e
por isso fiquei todo aquele tempo calado, fingindo estar em estado de choque…
não sei por quanto mais tempo vou aguentar mentir à minha família, os meus pais
já andam desconfiados de que eu ando a esconder alguma coisa. Eventualmente
terei de contar a alguém… a não ser que a professora o faça primeiro.
Foi isto que li quando retirei o papel que se encontrava
dentro do envelope. Não vinha assinado, nem tinha data, nem qualquer tipo de
cumprimento, apenas isto. De facto não seria necessária uma assinatura, eu
sabia perfeitamente de quem era aquele bilhete que, apesar da declaração de
amor simples e directa, me soou bastante a uma ameaça. Uma ameaça leve e subtil
que tinha caído como uma bomba nas minhas mãos ou, direi antes, no meu almoço. Voltei
a colocar o papel dentro do envelope, que por sua vez guardei num compartimento
meio escondido da minha mala. No fundo eu já tinha escolhido a minha própria
sentença, ponderei-a com muito cuidado depois da morte da minha mãe, agora só
faltava pô-la em prática, e se eu tinha alguma dúvida acerca da minha decisão,
essa tinha-se dissipado por completo depois de ler o bilhete do João. Escusado
será dizer que o Fernando foi a primeira pessoa a quem eu a comuniquei.
- Tens a certeza que é isso mesmo que queres fazer? Não
achas que estás a deixar demasiadas coisas para trás?
- Quais coisas? É claro que tenho a certeza; não vou deixar
grande coisa para trás, não mais do que tudo aquilo que deixei quando vim para
cá. Lembra-te que a única razão pela qual vim, era a saúde da minha mãe… visto
que ela não está mais entre nós, nada mais me prende aqui.
- Obrigado pela parte que me toca.
- Ora, não sejas dramático, vamos continuar amigos;
realmente, agora que penso nisso, foste o único amigo que eu fiz aqui.
- Eu sei. Desculpa se estou a ser egoísta, mas também me
custa ver-te partir.
- Eu compreendo, e espero que me compreendas da mesma forma.
Preciso partir antes que a bomba estoire.
- Quando falas assim parece que estás a fugir…
- E de certa forma estou, embora não por ser cobarde, mas
porque será o melhor para todos. O João não me vai conseguir esquecer se me vir
todos os dias na escola.
- Eu acho que é apenas uma paixoneta de adolescente.
- Uma paixoneta que pode causar grandes problemas, a ambos e
à escola.
- Sim é verdade, faz o que achas que deves fazer. Devemos sempre
seguir a nossa intuição, pelo menos é o que se diz.
Estava mais do que certa daquilo que tinha em mente, iria
apresentar a minha demissão na segunda feira. Posto isto, o Fernando
convidou-me para uma saída no fim de semana, em jeito de despedida. Não sou
grande apreciadora de despedidas, mas ele conseguiu convencer-me, alegando que
apenas nos iríamos divertir, beber uns copos e dançar, nada de choradeiras de
meia noite, nem despedidas com direito a lencinho branco ao vento.
Há anos que não dançava tanto; e que surpresa que fiquei
quando constatei que o Fernando, aquele homem desastrado, afinal dançava muito
bem. Dancei tanto que nem me apercebi da quantidade de álcool que tinha
ingerido, até chegar ao carro e me dar conta que não conseguia ver a estrada
nitidamente.